quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Oração por Satã

"Deus, por favor, rogo-Lhe a compaixão necessária com aquele humilde servo. Tende piedade de sua petulância. Pois todos nós, seres vivos, vivemos momentos de escuridão, quando Vossa luz não consegue nos atingir. Anjo ou humano, somos todos imperfeitos perante Vossa elevada altura. Sois a perfeição, e imploro-Lhe pela sabedoria da compaixão perante Vossos servos pecadores. Lúcifer o desafiou, mas o Senhor já perdoou outros pecadores, que gesticularam a penitência e o arrependimento diante de Vossa graça. Dê-lhe essa possibilidade, é o que esse humilde servo pede nessa prece. A Salvação enquanto pecador, Vosso olhar divino para um anjo caído, relegado ao oblívio pelas Eras. Ó Poderoso, peço-Lhe a compaixão perfeita para todos o seres vivos, e a abstenção pelos pecados dos nossos antepassados. Iluminai nossa singela consciência e retirai-nos da Escuridão, nós humanos e todos com livre arbítrio, impotentes perante Vossa Graça. Perdoai Satanael, ó Pai, por seu momento de ignorância e imperfeição diante de Vossa vigilância. Pois todos nós, seres inferiores, passamos por maus momentos, e sabeis que a Bondade perfeita não está em nosso alcance. E defronte a Eternidade ao nosso lado, abdicamos de arrogância, mas somos vítimas de infortúnios. Suplantai tal fraqueza, ó Pai, com vossa imensa Compaixão, e concedei novamente a Salvação àquele pobre servo infeliz, condenado ao Fogo Eterno por um mau momento. Escutai suas preces, e tende-lhe piedade, assim como com todos nós, demais imperfeições danadas pelo mistério da Criação."

"Mas quem reza por Satã? Quem, em dezoito séculos, tivera a simples humanidade para orar pelo pecador que dela precisava mais?" - Mark Twain

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Fragmento do diário de Welton Muniz

" Hoje no trabalho presenciei um evento daqueles que causam pesares, mas que também trazem a alegria de saber que não foi com você. Fui logo acometido por um grande alívio e sentimento de superioridade, intensificados pelo código institucional que me exime de qualquer possibilidade – por mais apocalíptica que possa localizar-se a conjuntura da nação – da vicissitude ocorrer sob minha pessoa. O misto de felicidade e comiseração por meu companheiro demitido foi curioso e causou confusão cerebral e linguística. Senti um turbilhão de labirintos darem voltas giroscópicas sobre um centro de gravidade, que no caso seria meu eixo de valores.
Mas agora já está tudo bem. A rotina já voltou, e não houve muitas cerimônias no último dia do meu amigo de Divisão, demitido abruptamente após meia década na repartição. As muitas demissões da empresa terceirizada, responsável por uma pá de serviços baixos, causaram algum ti-ti-ti em dois dias. No terceiro já estava esquecida, afinal se pediu um corte de 30% nos gastos. O clima nacional é bem baixo-astral, ao menos para economistas e demais entendidos. A massa está otimista, graças a Deus. Esse terceiro dia, quando nunca mais veria meu amigo de Divisão, exibe um sentimento purificado. Sei o que é. Já está tudo bem. Posso escrever meu diário e recordar eventos que são sintomas do sistema e do Primeiro Estado, do qual faço parte. Eu sou um herói e um deus. Meus sintomas são as pedras do Olimpo, eu sou um aristocrata. Um burocrata, e nada irá me tirar desse pedestal. Que venham os cortes, as crises. Eu tenho direitos. Eu sou um cidadão, maior que tudo e todos. Meu colega pode ter ido embora, agradeço. É triste ver um companheiro de rotina partir, depois de tantas conversas jogadas fora. Ele também era flamenguista. Mas agradeço a possibilidade de me rever no meu lugar, este canto tão perfumado e acolchoado, protegido do mundo exterior, tão horroroso que tira as pessoas do seu direito de trabalhar onde estão, sem rodeios, direitos à defesa, e sem motivos senão o corte de despesas. Sem possibilidade de se recorrer à Justiça. Até quando o mundo será tão cruel com o povo? Por que o dinheiro não é infinito?"

- W.M., nomeado* e empossado




* Ministério dos Ministros Administrados. Portaria nº 366, de 21 de junho de 2010. Nomeia, em caráter efetivo, em virtude de habilitação no concurso, regulado pelo Edital de 6 de novembro de 2009, de acordo com o artigo 9º, inciso I, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, para exercerem o cargo de Assistente de Performance, da Carreira de Fidalgo-Amanuense, do Quadro Permanente do Ministério dos Ministros Administrados, os candidatos abaixo relacionados [...] e dá outras providências. Diário Oficial União, nº 124, 01 jul 2010; Seção 2, pp. 70. ISSN 1677-7050

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Folha de S. Paulo - Estatais aos pedaços / Coluna / Eduardo Giannetti


Os Donos do Poder é leitura obrigatória para quem quer entender a história sociopolítica brasileira - dou-lhe cinco estrelas. Um dos pontos importantes para a atualidade é a percepção do Brasil como pré-moderno, pois o irracional e contraditório tem força institucional. Nossas instituições podem parecer democráticas, mas são de fato representativas? Os políticos fazem o que o povo espera deles? O mesmo vale para o liberalismo, vivemos mesmo em uma economia de mercado? As empresas competem pela qualidade de seus produtos, ou por quais conseguem um melhor esquema com o poder público?

Se o projeto nacional em vigor é o da democracia liberal, estou convencido que ainda faltam alguns anos-luz até atingirmos um grau decente. Na prática vivemos uma oligarquia de grupos que se perpetuam no poder e impedem o desenvolvimento da sociedade civil: o Estado bloqueia a livre iniciativa, sustenta uma casta de privilegiados (altos funcionários públicos e grandes empresários), e assim vamos seguindo, com a reprodução desse padrão garantida pelo caráter de nossas instituições, que não valorizam a inovação e tampouco a competição.




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O paradoxo salta aos olhos. Temos um governo de perfil estatizante, cioso da sua orientação nacional-desenvolvimentista, mas que logrou a proeza de arrebentar nossas duas principais empresas estatais. Obra de raro descortino.
A Petrobras, orgulho nacional, não só perdeu a condição de apresentar um balanço auditado crível como será forçada a republicar balanços anteriores, corrigindo as baixas referentes ao pagamento de bilhões de reais --quem saberá ao certo?-- em propinas nos últimos anos (outro exemplo da máxima, atribuída a Pedro Malan, de que "no Brasil até o passado é imprevisível").
Já a Eletrobras, vítima da MP 579, de 2012, que antecipou a renovação das concessões de energia mediante a redução das tarifas, acaba de admitir que não disporá de recursos para pagar dividendos neste ano.
Além da queda do seu valor de mercado, com ações negociadas abaixo do valor patrimonial, a Eletrobras teve prejuízo de R$ 2,7 bilhões só no terceiro trimestre deste ano, o que inviabiliza a remuneração mínima de 6% prometida aos acionistas.
Os caminhos do inferno, é claro, diferem. A ruína da Eletrobras foi fruto das boas intenções do governo Dilma (o setor elétrico, aliás, teria sido o tema da dissertação de mestrado da presidente na Unicamp), ao passo que a devastação da Petrobras resulta, entre outras coisas, da ação articulada de profissionais: uma quadrilha de empreiteiros, burocratas, lobistas e dezenas de políticos que conferiu ao lema getulista --"o petróleo é nosso"-- inédito e inadvertido significado.
Mas existe um substrato comum a esses descalabros. Ambos refletem a deformação patrimonialista do Estado brasileiro --"o capitalismo politicamente orientado", no dizer de Raymundo Faoro em "Os Donos do Poder", que aportou por aqui com as caravelas, atravessou cinco séculos de história e foi alçado a novo patamar no atual governo.
As facetas do patrimonialismo relevantes nestes casos são 1) o microgerenciamento e a tutela do Estado sobre a atividade econômica, alterando regras e revendo contratos de forma arbitrária ao sabor de conveniências circunstanciais e 2) o condomínio do poder calcado na simbiose promíscua entre público e privado aliado ao loteamento de órgãos e empresas estatais como forma de cooptação política.
A probabilidade de existir corrupção aumenta à medida que os governos se envolvem em todos os meandros da economia. A debacle da Eletrobras e o escândalo da Petrobras chocam pela magnitude, mas estão em perfeita linha de continuidade com a atual recaída patrimonialista.
O Brasil carece de instituições que mantenham os cidadãos e a economia a salvo dos abusos, inépcia, venalidade e ambições dos donos do poder.
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