É muito difícil falar de uma apresentação de recital de
formatura em Música – Composição, porque as obras são uma coletânea de peças do
artista criadas ao longo de seus anos de formação. Mas é possível, em ocasiões
não tão raras, captar certo espírito do artista que dá um norte às obras – a “essência
anímica”. O recital de Pedro Cardoso foi uma dessas.
A peça inicial, Folclorismo,
já apresenta um tom que se perpetua ao longo do recital, que remete a Oscar
Wilde e sua frase: “a vida é muito importante para ser levada a sério”.
Trata-se de uma interpretação de músicas populares como “Boi da Cara Preta” e
“Ciranda Cirandinha” com pitadas de formalismos modernos atonalizantes. As obras do recital carregam uma jocosidade que Pedro Cardoso parece querer passar
sem no entanto cair em lugares-comuns bem estabelecidos no ouvido popular. O
sucesso dessa empreitada em alguns momentos é um pouco dúbio: o tom lúdico por
vezes cai perante um medo artístico de querer se expor, isto é, um formalismo que parece servir de escudo bloqueando a comunicação lúdica com o público. Mas,
assim como o silêncio é imprescindível para a comunicação, também o formalismo
o é na música: a questão é o diálogo entre ele e a transmissão de coisas
significativas, que é o que realmente marca as pessoas e as faz lembrar do que
acabaram de ouvir. Pois falemos do marcante no recital:
O conteúdo de matriz sentimental, distante e parco na maior parte do tempo, ao surgir é tempestivo: está presente nas composições a cargo do Iandé Ensemble, intituladas Disciplina Humanística e
Ricercata em Gestos. Trata-se de música intuitiva onde os músicos são “formadores
de opinião” – muito mais do que em outros casos onde apenas se reproduz a
partitura literalmente. Assim, é questionável se o dedo sentimental é da
performance ou do compositor.
No conteúdo onde o dedo de Pedro Cardoso é mais palpável,
vigora a mentalidade wildeana de pequenos prazeres, da grande perícia em trazer
conteúdos que as pessoas normalmente fogem de abordar – como política e crítica
culturala – para o concreto do entretenimento. Vemos lampejos do
humor cáustico de The Onion e do
“Elvis da filosofia” Slavoj Zizek na transfiguração de temas pesados para serem
mais digeríveis, principalmente nas diversas obras intercaladas que constituem
o álbum a ser lançado A Era dos Apps.
Chama também a atenção o uso de línguas falsas: em duas
peças as temos. Elas apelam intelectualmente para duas coisas completamente distintas:
contracultura e pós-modernidade. Certa vez um hippie – um mesmo, um americano
dos anos 60 daquele estilo Woodstock – falou: “Não tenho palavras, eu tenho
alma”. Hippies e beatniks associaram a linguagem ao sistema social que não lhes
conferiam sentido (do mínimo ao pleno) de existência e viram um enfrentamento
ao status quo de transmissão de conteúdos como necessário para a efetivação da
vida. Brincar com línguas inventadas é, nesse âmbito, um instrumento
contracultural, uma vez que convida a sair dos lugares-comuns dos idiomas que
ocupam tanto o cotidiano quanto nossa consciência: a performance de Malu Engel em Lugares que Não Foram invoca a ascensão nietzscheana do espírito que, convertido em criança, passa a levar jogos a sério e encontra aí uma essência perdida pela modernidade. Por outro lado, há o deserto
da pós-modernidade: assim como na transfiguração de temas pesados em conteúdos
lúdicos d’A Era dos Apps, o uso de
línguas falsas em Herr Francis parece querer
simplesmente jogar diversão; ergue-se a questão de que o elemento contracultural seja mero wishful
thinking de críticos, i.e. masturbação intelectual para agradar outros
intelectuais. Fica no ar a questão: do que o artista está cienteb? O
conteúdo da obra carrega de fato carga contracultural, mesmo após a constatação
de que ela não será absorvida pelo público, ávido para viver as obras no âmbito
puro e simples do entretenimento? E será que o artista tem essa visão sobre o
público? Bem, se Oscar Wilde vive em Pedro Cardoso, o mistério está resolvido:
bem-vindos ao deserto pós-moderno, aproveite a estada; clamar por algo além do
deserto é clamar por dor de cabeça desnecessária.
Mas essa hipótese da jocosidade pura e simples não é muito
satisfatória… afinal, algo motivou o artista a colocar referências a temas tão
profundos em sua obra, não? O que será? Já dizia Bukowski que um intelectual
diz algo simples de modo difícil e o artista algo difícil de modo simples. Se
for desse jeito mesmo, podemos afirmar, no que tange o marcante: o recital de
Pedro Cardoso é um atestado de arte, e que fique marcado assim.
a. Destacam-se uma crítica ao nacionalismo futebolístico
brasileiro em E agora: futebol e um
apontamento de como funciona o sistema político, “da história da Inglaterra à
eleição para síndico do bloco” em Olaiela
(que talvez tenha sido o ápice do diálogo entre música pop e crítica cultural/filosofia
política).
b. Não que não seja uma pergunta um pouco capciosa, afinal
atualmente costuma-se achar que a obra transmite significados independente do
autor querer ou não. Mas não se deve ignorar o fato do compositor não ser (ao
menos nesse caso) uma máquina que simplesmente compõe sem pensar no que está
fazendo.
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