Este texto foi escrito para dialogar com duas teorias que estão circulando por aí, sobre o que seria uma
sociedade moderna. Resumindo ao máximo:
Modernidades múltiplas: tudo é moderno, temos que estudar as sociedades em suas particularidades e a causalidade histórica que a tornou aquilo que ela é hoje.
Teoria da modernização: a divisão tradicional (pré-moderno) e moderno ainda é relevante. Há uma série de aspectos culturais que já são
globais, ou seja, compartilhados por várias sociedades devido ao desenrolar histórico direcionado ao desenvolvimento.
Vale muito a pena dar uma olhada no que a teoria da modernização considera "compartilhado". É bastante relevante!
Segue o texto:
Teoria da
Modernização ou Modernidades Múltiplas?
Em um aparente confronto entre as postulações das duas
teorias, há o problema da referência: ambas falam de coisas distintas. A teoria
da modernização invoca uma visão dualista que dialoga entre as noções de
tradicional e moderno para interpretar o mundo contemporâneo. Ela atenta para a
convergência de certas características dividas por sociedades consideradas mais
desenvolvidas, enquanto que aquelas menos desenvolvidas compartilham aspectos
que as tornam mais tradicionais.
Entretanto, é tolice tomar sociedades como rigidamente “modernas” ou
“tradicionais”. É mais contributivo pensar esses conceitos como ferramentas
heurísticas de compreensão do fenômeno social. Os críticos da teoria da
modernização muitas vezes ignoram o necessário laxismo que deve acompanhar o
sujeito ao tratar de ciências humanas.
Já a teoria de modernidades múltiplas toma mundo
contemporâneo e modernidade como sinônimos. No século XXI, o globo é composto
por civilizações modernas, todas afetadas por um “longo período de
modernização”. A modernização para essa teoria é um processo bastante antigo,
que se refere basicamente à tomada de consciência de um sujeito que é agente
político e continente de mudanças no destino social (o sujeito iluminista é o
mais claro exemplo). Outro aspecto de relevância para a teoria é um
estado-nação institucionalizado (por esse critério e uma dose de intransigência
apenas a Antártida não seria moderna!).
Em uma direção oposta à teoria da modernização, os
modernistas da multitude concentram-se na diversidade da gênese das culturas.
Os “adversários” não negam essa diversidade, mas direcionam suas atenções na
semelhança entre instituições, racionalidades e práticas que muitas sociedades
compartilham.
Os “multi-modernistas” apareceram após a teoria da
modernização já ter sido propagada no meio científico, mas não invalidou
empiricamente suas idéias. Talvez tenham conferido um pluralismo semântico incoveniente
à palavra “moderno” – poderiam ter usado outra palavra – que pode causar
desagradáveis confusões na arena científica.
De cada uma delas pode-se aproveitar aspectos diversos.
A teoria da modernização tem muito a oferecer ao relembrar que diversas
sociedades possuem características compartilhadas, que explicam razoavelmente
porque são tomadas como mais desenvolvidas. Um conjunto de fatores
socioinstitucionais conceituado na teoria da modernização tem corroboração
empírica com diversas realidades percebidas em certas sociedades. A noção de
moderno trazida pelos seus teóricos é uma boa ferramenta de leitura do mundo,
sendo útil para analisar eventos políticos, discursos e práticas de várias
sociedades, além de orientar políticas governamentais. Seu uso como prisma
teórico possui, evidentemente, limitações: é analítico, e não genealógico. É
por si incapaz de traçar a gênese de práticas sociais “tradicionais” ou
“modernas”, que é a trend da
sociologia continental (e da brasileira).
No entanto é bom lembrar que a modernização não é apenas
uma verve racionalista. As preocupações dos primeiros sociólogos – como Weber e
Tönnies – envolviam as mudanças profundas que estavam acontecendo na sociedades
com o caminhar da Revolução Industrial. Esses autores buscaram as conexões
empíricas na passagem para uma nova forma de vida em várias sociedades –
diga-se de uma “tradicional” para uma “moderna” – que se constituiu de mudanças
no plano econômico (economia de mercado, propriedade privada), discursivo
(racionalidade moderna, método científico), social (passagem da vida em
comunidade para a vida em sociedade) e político (fixação do estado-nação como
pilar politiconormativo, “dominação racional-legal”). Dessa forma, apesar de
muitas vezes a idéia de modernidade associar-se a uma configuração
socioinstitucional idealizada, ela também é reflexo de processos em andamento
contínuo, que mudaram as formas de vida intensamente, principalmente a partir
do século XIX.
A teoria das modernidades múltiplas é mais um nível de
análise do que propriamente uma teoria, no sentido de que não fornece nenhum
desvelamento conceitual novo para o terreno científico. Ela até vai em direção
oposta ao desconstruir a dicotomia elaborada previamente, entre tradicional e
moderno. Esse conjunto teórico não seria relevante, uma vez que o importante
seriam as particularidades dos programas culturais reconstruídos
incessantemente. A idéia de modernidade
seria contingente ao discurso próprio a uma determinada sociedade, e para
compreender seu sentido é necessário imergir na genética cultural do grupo em questão. Os
modernistas múltiplos buscam, portanto conectar a noção de modernidade a
diversas visões de mundo particulares, seu significado estaria ligado a
percepções subjetivas, possuindo várias facetas. Uma de suas críticas freqüentes à teoria da
modernização, como coloca Eisenstadt (p.139), é que:
seus teóricos
assumiam, mesmo que só implicitamente, que o programa cultural da modernidade,
tal como se desenvolveu na Europa, e as constelações institucionais básicas que
aí emergiram, acabaria por dominar todas as sociedades modernas e em
modernização, com a expansão da modernidade, viriam a prevalecer por todo o
mundo
Atualmente, tal filosofia da história tornou-se mais
ingênua e antiquada, ou pelo menos irrelevante, em relação ao seu entusiasmo em
épocas mais antigas (os anos 50 do século passado, por exemplo). É realmente
insensato julgar que a ambição política de uma multitude de povos é adotar a
forma ocidental de estrutura social. Isso é presumido pela teoria da
modernização, segundo Eisenstadt. Entretanto, ele está considerando o discurso político do qual se apropriou,
por exemplo, o governo estadunidense e de certa forma a “mídia global”. Mas a
teoria engloba aspectos mais relevantes para as ciências sociais,
principalmente a convergência de estruturas de diversas sociedades, que vão
muito além de arquiteturas políticas formais (como democracia representativa),
perpassando certos elementos culturais gerais que impingem culturas locais,
caracterizando a globalização.
A teoria da modernização possui, portanto uma dimensão política e uma dimensão científica. No plano político a utilizam
como fundamentação para os valores que devem preencher o programa cultural de
diversos Estados. Os formadores de opinião pública no Ocidente estão
principalmente alinhados à idéia de que a agenda política de uma sociedade deve
estar direcionada ao cânone ocidental para o desenvolvimento, que é a forma
unilateral de alcançá-lo. Esse discurso está se esgotando progressivamente, com
o esbatimento do impacto do fim da Guerra Fria (enfraquecimento do Consenso de
Washington, por exemplo), e o estabelecimento de sociedades com programas
culturais distintos do “Ocidental padrão”. Os diversos movimentos sociais
(ecologista, feminista, gay, “Occupy”, etc.) em ascendência garantem uma
prescrição política multifacetada ao redor do globo, e os horizontes políticos
dos diversos Estados se divergem. Não é razoável pensar que as sociedades
ambicionam uma configuração política racionalizada e determinada, como sugere o
discurso político fundamentado pela teoria da modernização.
É neste quesito que os modernistas múltiplos confrontam
a teoria da modernização. Eles atentam para a diversidade na composição das
diversas identidades coletivas e programas culturais endêmicos, que pulveriza a
idéia de um programa de desenvolvimento único. Modernidades múltiplas
referem-se a percepções sociais
múltiplas, de diferentes agendas políticas a serem estabelecidas. Neste
paradigma, a idéia de hierarquia cultural é dissolvida, dada sua
“irracionalidade”. As diversas identidades culturais são tratadas em seu
caminho de reconstrução contínua, que adquiriu várias faces diferentes na era
moderna.
A teoria das modernidades múltiplas desmistifica,
portanto, o discurso político que se apropriou da teoria da modernização, dada
a deslegitimação de uma hierarquia cultural previamente estabelecida. Mas a
parte científica da teoria da
modernização afirma justamente que a pluralização de programas culturais é
elemento da modernidade! A descoberta do sujeito de que ele é capaz de moldar a
ordem política vai progressivamente fortalecendo a individuação pessoal e o
número de movimentos sociais, deslocando eixos tradicionais de diálogo político
(como o estado-nação) para outros terrenos. Logo os pressupostos básicos dos
modernistas múltiplos estão contidos nas tendências analisadas pelos teóricos
da modernização.
Essa forte individuação pessoal é apenas um dos
elementos compartilhados por várias sociedades contemporâneas que as
caracterizam como modernas. Existem outros, como sistema de mercado e dinheiro,
império da lei, educação universal e organização burocrática das instituições
públicas e privadas que são compartilhados por todas as sociedades modernas. A eficiência na implementação de tais
instituições é o que caracteriza o grau de modernização, segundo sua teoria. Essa
conceituação não foi invalidada empiricamente pelos modernistas múltiplos, e
continua sendo ferramenta importante de análise. Volker Schmidt afirma que “não se pode tornar
moderno e alcançar o Ocidente sem se estabelecer uma estrutura básica de sociedade que assemelhe-se à do Ocidente,
porque essa estrutura é a verdadeira condição de sucesso do Ocidente” (p.163).
Essa estrutura básica é minimizada pelos modernistas múltiplos, que focalizam
em diferenças consideradas menos relevantes para os teóricos da modernização.
Para estes, afirma Schmidt, as diferenças cruciais “tendem a ser aquelas que
separam a sociedade moderna dos tipos pré-modernos de organização societária
(...). Diferenças desse tipo, são
amplamente ignoradas pela escola das modernidades múltiplas”. (p.166)
Compreender o quadro socioeconômico de um país estudando
sua história cultural, traçando a causalidades que motivaram seu
desenvolvimento particular é extremamente importante. Estudar a gênese dessa
construção é bastante contributivo para o conhecimento, assim como comparar
suas evoluções com as de outros povos. Uma abordagem não anula a outra. A
teoria da modernização sai ganhando no quesito ciência por prover instrumentos
conceituais importantes, desenvolvidos historicamente, enquanto a escola das
modernidades múltiplas ainda está no início dessa sensível trajetória.
REFERÊNCIAS:
EISENSTADT, S. N. Modernidades Múltiplas. Revista Sociologia, Problemas e Práticas, nº 35, 2001, p. 139-163. Portugal.
SCHMIDT, Volker H. Modernidade e Diversidade: reflexões sobre a controvérsia entre teoria da modernização e a teoria das múltiplas modernidades. Revista Sociedade e Estado - Volume 26 número 2 Maio/Agosto 2011. P.155-183. UnB, Brasília, Brasil.