segunda-feira, 28 de março de 2016

O néctar do Brasil: compadre Quelemém

Ao final de Grande Sertão: Veredas, temos uma dose cabal de brasilidade, veiculada na saída de Riobaldo à pergunta tormentória que circulava pela sua vida havia um bom tempo: Havia ele vendido a alma ao Diabo?
A esta perturbação, vemo-la escorrida perante a sabedoria de compadre Quelemém, que desanuviou Riobaldo. Mire veja a cena:

Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência - calma de que minha dor passasse ; e que podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive vergonha, assaz.
Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei:
---"O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?"
Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu:
---"Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais..."


Riobaldo se livrou do overthinking, esta autocoação (que o sociólogo Norbert Elias associa ao processo civilizador) bem mais característica de povos europeus que dos terra brasilisA brasilidade da conduta de Riobaldo segue por esse livramento de uma questão trouxa: Fez pacto com o Diabo? Conversa mole, rapaz, vá viver sua vida e deixe disso, moço! O brasileiríssimo deste enlace final e climático, está não na resolução da questão, mas na sua desconstrução! Para o bem e para o mal, nós, brasileiros, somos menos propensos a nos deixar ser conduzidos por uma tábua de valores (no caso de Riobaldo, o cristianismo folclórico). É de fato uma faca de dois gumes. No caso de GSV, dispõe-se de forma épica. 

Um dos melhores livros brasileiros, sem dúvida.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Futuro sistema de concursos

Quiçá um dia virá quando a última etapa do sistema de seleção de servidores será o "leilão holandês", isto é, um leilão invertido entre os aprovados nas etapas anteriores.

Os aprovados nas avaliações de competência ao cargo disputarão quem está mais disposto a ganhar menos para exercer a função. Princípio da eficiência econômica.

Cabe um problema: quem decidirá quais são as competências mínimas para o exercício do cargo? A pontuação mínima para ser aprovado? Certamente haverá uma politização da questão, as Bancas Avaliadoras, por exemplo, poderão subir hiperbolicamente a nota de corte, para garantir a aprovação do crème de la crème, somente.

Solução meio que de ficção científica sombria: coloquem pessoas já dentro do órgão para fazer as provas. A média de pontuação será a nota de corte. Se eles já estão lá e tiram em média x, significa que aquele x é suficiente para exercer o ofício. Sim? Não?

sexta-feira, 11 de março de 2016

Escravidão e concurso público

Um dos problemas econômicos principais da escravidão é seu alto risco: os escravos eram muito caros, e por causa disso apenas forneciam um retorno em longo prazo. Isto é, o lucro do trabalho escravo vinha muito depois de se ter pago quantias elevadas por aquele ser humano.
O risco vem de, afora exigir um capital inicial muito alto para gastar nos escravos, a produtividade poderia não compensar, o "trabalhador" poderia morrer cedo, fugir, ser um rebelde, etc.

Neste sentido, a mão de obra assalariada é muito mais eficiente e contributiva para o desenvolvimento econômico--exige menos investimento inicial, fornecendo lucro de forma mais rápida, e é possível demitir funcionários quando seus custos não estão compensando o retorno adquirido.

O concursado não se encaixa nessa apreensão: ao recrutar funcionários dessa forma, o governo está se comprometendo por décadas a pagar uma quantidade x àquele indivíduo. Pela vigente Constituição, não é possível passar a pagar menos ou demitir os improdutivos. É um custo obrigatório. "Haja o que hajar", os soldos devem ser pagos e até mesmo reajustados conforme inflação.

Escravidão e concurso público têm isso em comum: antes de garantir um retorno, é necessário firmar um compromisso enorme, que pode implicar em sérios prejuízos. Perversamente, as duas práticas vitimizam a parcela mais sofrida da sociedade: outrora escravos, submetidos a uma desumanização inconteste; hoje os mais pobres (em sua maioria negros), que são quem mais sente o peso de impostos, muito usados para sustentar ricos burocratas.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Sobre a pós-ironia

Em inglês, na Wikipédia, temos dois verbetes que conduzem ao assunto: Post-Irony e New Sincerity.

É uma ideia bem trabalhada no romance Graça Infinita (Infinite Jest), do qual já comentei aqui alguma vezes. Consiste numa tentativa de recuperação da sinceridade e busca por uma comunicação genuína entre artista e receptor, que caracterizou a arte...bem, desde sempre, até o século XX:

As vanguardas literárias, a partir mais ou menos de 1960 (cf., por exemplo, tudo do Thomas Pynchon e Macunaíma do Mário), passaram a ironizar a realidade, distorcê-la em humor negro que até então era inovador, tanto no âmbito crítico como no estético.

Caçoar da televisão, dos Beatles, de uma parte da cultura brasileira, das intrigas amorosas da classe média (Nelson Rodrigues), etc. foi uma forma de inovar e ao mesmo tempo construir conteúdo significativo a longo prazo.

Mas então, a ironia deixou de ser vanguarda e passou a ser lugar-comum. A vemos na cultura pop banalizada, onipresente. Como usá-la, então, para trazer algo edificante, se tornou-se apenas uma ferramenta de reprodução do entretenimento raso?

A solução vanguardista foi a pós-ironia. Trata-se de conceber o mundo como um lugar irônico, porém buscando uma tentativa de superação desse mar defensivo por meio de espécie de jornada espiritual, de busco do Sentido da Vida. Chamo a ironia de mar defensivo, pois é uma "saída para tudo": é como bancar o idiota: você se torna imune a quaisquer críticas quando não as leva a sério.

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Acaba de vir uma epifania: se a pós-ironia é uma tentativa de superação do mundo irônico, ainda faltam livros que tratam o tema em mais de um personagem, e com os personagens dialogando de forma não irônica. E como será isso? Creio que será algo meio Irmãos Karamázov, mas será interessante ver tal situação operando em um meio irônico. 
Algo do tipo: imagina Dostoiévski cruzando com Hermes e Renato, onde o russo tenha um pouco mais de participação de mentalidade além de ser espécie de "luz no fim do túnel".

Em Graça Infinita, o personagem pós-irônico é Mário Incandenza. E Don Gately. Mas os dois nunca se cruzam...

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Retirei alguns memes que lidam com o tema do ótimo "site de artes/humanas" (estou sendo pós-irônico) The Philosopher's Meme. Falarei mais sobre eles em outro post...



Eis um meme pós-irônico em ação.