quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Burocaos

A sala estava escura, o ar frio e úmido. Ficava no subsolo, o chão e parede de pedras ciclópicas. Gotas de água pingavam de canos que percorriam o teto. Em alguns cantos se via a terra lutando contra as pedras para ocupar espaço.
Estava cheio de gente, a maioria do próprio governo. Comissionados, os reputados DAS, a nata da burocracia federal. Aliados do Executivo, amigos e parentes, convivas de décadas passadas, que agora vestiam suas roupas formais e comiam salgados finos após essas reuniões.
Estavam ali para a encenação oficial. A presidenta logo iria dar o anúncio formal. A medida foi uma sacada do corpo técnico do Ministério da Fazenda, em coordenação com o Banco Central. Uma elite com credenciais científicas para tais medidas, mas que só três semanas antes teve o estalo que levou até essa sala escura e úmida. ]
A presidenta se sentou, seguida por seus assessores mais próximos, papagaios-mudos. Ouviu-se uma tosse, de um senhor de meio século, alto funcionário do BNDES. No mais, todos estavam com uma melancolia de ressaca. O ânimo do anúncio já tinha se extinguido há alguns dias, e a sala escura não criava expectativas.
O microfone chiou. Deu-se uma batidinha de conserto, seguida por uma leve tosse de reparo de voz. O som presidencial ocupou as caixas de som do ambiente, as gotas d'água ficaram mudas. E houve o anúncio:

- Inauguramos o Programa Mais Burocratas. Importaremos servidores públicos chineses.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O que significa racismo no Brasil?

Ultimamente andamos vendo muito a palavra racismo pela Internet brasileira. Talvez o maior incentivador do assunto foram as discussões de cotas, primeiro em universidades públicas e agora em concursos públicos. O debate se coloca entre um pólo que defende a "meritocracia", ou seleção dos mais aptos, e outro que visa promover a igualdade pela correção de desigualdades históricas, sendo para isso necessário ações afirmativas.
Err... queria explicar mais adiante, depois de um texto mais extenso, mas não deu, mil desculpas...
O racismo brasileiro é exatamente a percepção da cor associada a uma classe social mais pobre, e a pobreza majoritariamente vinculada à etnia negra. As pessoas de pele mais escura tendem a ser mais pobres no Brasil, uma vez que até 130 anos atrás quase todas elas eram escravas que não tinham nada a não ser o que era dado pelos senhores. Mas não é apenas a cor da pele que define essa etnia racialmente desfavorecida, mas também a feiura. Um negro rico médio é bem mais bonito que o pobre, que tem a pele mais castigada, os dentes mais tortos, fora aqueles traços de beleza orientados pela cultura europeia (o negro rico tem mais "sangue branco"), na qual o nariz e os lábios são o maior exemplo (mas o cabelo também).
Assim, vemos o racismo quando associamos esse negro pobre feio a um marginal, como no caso emblemático que ocorreu em Vitória no dia 30/11/2013. O vemos também em imagens como essas:








     




A da esquerda mostra o médico cubano negro sendo vaiado pelas médicas brasileiras, de cor "branca". Estão representadas aí as classes econômicas brasileiras, pelo cara que ganha pouco e não precisou ser rico pra se tornar médico, e as mocinhas de família endinheirada, o que possibilitou os estudos em escolas particulares, para depois ir para uma universidade federal concorrida, ou então pagar uma mensalidade cara em uma instituição privada (para depois ganhar muito bem).

A da direita mostra a mesma coisa em escala maior: a classe "branca" que tem dinheiro para pagar uma escola de qualidade (mensalidades altas, e que não concorrem em qualidade com as escolas públicas) pega quase todas as vagas para o curso de medicina na universidade federal. E a classe negra, maioria dos pobres, pega quase todas as vagas do concurso para gari no Rio de Janeiro, para ganhar na época menos de 1000 reais.

Pra finalizar: ao que me parece, o preconceito é só um sintoma do racismo brasileiro. Ele pode nortear o racismo em outros lugares (como nos EUA), mas aqui, é apenas um derivação lógica da associação da cor com uma classe econômica (o nosso racismo), uma vez que os bandidos tendem a vir da pobreza (se não é verdade, pelo menos o senso comum acha isso).

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A Roda de Usuários

No Plano Piloto, zona central de Brasília constituída pela Asa Norte e Asa Sul (a definição exata é controversa), é comum encontrarmos pelas quadras grupos de pessoas interagindo no formato "roda". Elas estão fumando maconha.

Ao contrário de muitas cidades, o Plano Piloto não tem ruas: temos o asfalto e carros passando por cima, mas elas não seguem o padrão rua-calçada-construção. Há muitas áreas verdes (espaços ermos ocupados pela "natureza") e poucos pedestres. Geralmente as pessoas andam de carro, então estacionam próximo a onde querem ir e mal caminham. Quem vai de ônibus pode tomar vários caminhos diferentes entre as diversas áreas verdes. Como resultado, quase não tem gente no meio das Superquadras - a área residencial típica do Plano Piloto - e pode-se fumar maconha sem o stress de ver gente olhando com maus olhos.

Assim há uma relação entre características estruturais do Plano Piloto (ausência da rua tradicional, muita área verde, distinção entre espaços residenciais e comerciais) e agenciais (pouca gente andando nas ruas) que confere pouca publicidade ao ato de estar fumando maconha - algo malvisto - fora da própria casa.

As classes médias do Plano Piloto se aproveitam da situação para se encontrar para fumar em diversas Superquadras. Algumas são evitadas, como a 402 Sul, por se tratar de "quadra de militar". Na Asa Sul, prefere-se as 400, por seus prédios não terem porteiro, e também o começo das 700, por haver uma área verde intermediária entre as casas (nessa linha há casas, e não prédio como no geral). Contudo não há imperativos, e no geral se fuma em qualquer quadra, principalmente se não se formar a roda em si, apenas sentar em um banco e ficar fumando como quem não quer nada.

Também há os "campões", grandes áreas verdes que separam quadras, que muitas vezes são utilizados como ponto de encontro. Muitas vezes desconhecidos intervêm para pedir um trago e fumar conjuntamente. O usuário de maconha classe média do Plano Piloto quase nunca se preocupa com polícia, que poucas vezes corre atrás de tais usuários. Mas para evitar possíveis inconveniências, costuma-se carregar apenas uma pequena parcela, e esconder nas áreas verdes os "flagrantes", durante o consumo do baseado da vez.

Essa Brasília é uma cidade convidativa para os maconheiros, que fumam com liberdade no espaço público, e aproveitam um contato com a natureza (as áreas verdes) que poucas grandes cidades têm. Não é como Belo Horizonte, onde muitas vezes é preciso "fumar andando".

A foto acima foi tirada de um bar. Como podemos ver, há uma área verde que separa o fotógrafo da roda, algo típico da cidade. Além disso, pouca calçada, o que reflete a baixa quantidade de transeuntes. O prédio residencial está ao fundo. Para essas pessoas, foi muito fácil sair do bar, fumar um baseado e voltar: precisaram andar 20 metros e já estavam em um lugar apropriado.





segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O que não se pode vender hoje?

Duas coisas me chamam a atenção: drogas e coisas relacionadas ao nazismo.
Li hoje essa notícia, e não entendi:

 
Portal de leilões se desculpa e suspende comercialização de 30 peças de vítimas de campos nazistas de extermínio
Um uniforme completo, um par de sapatos e braçadeiras com a estrela de Davi estavam entre artigos disponíveis
 
DE SÃO PAULO
 
Uma reportagem da edição dominical do jornal britânico "Daily Mail" mostrou que o eBay, site de leilões online, estava lucrando com a venda de artigos relacionados ao Holocausto, massacre de judeus por nazistas durante a Segunda Guerra (1939-1945).
Após uma "investigação urgente", em poucas horas o eBay suspendeu a comercialização das peças, se desculpou e prometeu fazer uma doação de 25 mil libras (quase R$ 90 mil) para caridade.
Entre os cerca de 30 itens encontrados pelo jornal, estava um uniforme que teria pertencido a um padeiro polonês que morreu em Auschwitz --à venda por cerca de R$ 40 mil. A lista também incluía sapatos e braçadeiras com a estrela de Davi. A empresa recebe comissão sobre os itens vendidos.
Ontem, porém, a Folha entrou no site e encontrou à venda fotos, documentos e etiquetas de identificação em metal de prisioneiros dos campos nazistas.
Segundo o "Daily Mail", a assessoria do eBay informou não saber há quanto tempo os artigos estavam no ar.
"Não permitimos anúncios desta natureza. Milhares de funcionários trabalham no policiamento do site, e utilizamos o que há de mais recente em tecnologia para detectar itens que não deveriam estar à venda."

E por que não se pode lucrar com algo do gênero? Enfim, essa imoralidade torna o Holocausto algo "sagrado", intocado pela lógica de mercado que desmistifica um monte de coisas (tudo que se pode vender e comprar - até visualizações do Youtube são compráveis). 
Como resultado, temos uma atitude bastante emotiva, que abala o espírito, ao tratarmos de Holocausto. Uma das consequências políticas é uma censura latente que barra críticas a Israel. Criticar esse país é para alguns ser anti-semita (o que é extremamente imoral pelos padrões do pós-guerra).

A questão das drogas também mostra a relação [fora do mercado => mistificação]. Quem está ausente desse mundo por vezes tem uma opinião que não reflete a realidade, mitos que o ocultismo do consumo de tais produtos acaba por gerar.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O erro de Adorno em "Fetichismo na Música"

Liberdade sob a ditadura
Todo o clima de liberdade vivido pela juventude praiana da época rolava em plena ditadura. Enquanto os militares impunham à sociedade diversas restrições, nas faixas de areia a atmosfera era de desbunde, o que pode facilmente ser confundido como alienação. Para o diretor do programa, porém, tudo aquilo era uma forma espontânea de resistência. Mellin cita um comentário do cineasta Pepê Cezar, que colaborou com o projeto, para falar sobre o assunto: “Quer uma forma maior de protesto que um cabeludo sem camisa, de shortinho e prancha colorida, atravessando a rua em direção ao mar em meio à toda aquela formalidade imposta?”
- Aquela turma viveu com liberdade em meio à repressão da ditadura. Mesmo com todos os limites impostos, eles pareciam ter menos restrições até do que a sociedade atual, com a nossa loucura de celular, internet e infinitas contas e compromissos. Tinha-se mais tempo pra tudo, principalmente pra “fazer nada”, pra curtir - argumenta o diretor. - O assunto não é debatido com profundidade no programa, mas a ditadura é citada em alguns momentos, principalmente quando falam do Arpoador e do Pier de Ipanema, lugares muito próximos do asfalto, controlado então pela ditadura, mas que eram também refúgios da repressão.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/seriado-aborda-cultura-de-praia-dos-anos-70-sob-olhar-contemporaneo-10223004#ixzz2ghGP0gbL 
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Para Teodoro Adorno, figura conhecida da Teoria Crítica, ou Escola de Frankfurt, o diretor acima está completamente errado. "É alienação!",  diria ele. Seu caso de estudo foi a música, mas seguia o mesmo raciocínio: se entreter é se alienar, por esquecer os problemas que assolam a humanidade.
Mas estaria mesmo o argumento oposto errado? Pra mim e pro diretor do programa, claro que não. Quem está certo, nós ou Adorno?
Resposta: ninguém. Essa pergunta é descabida, pois envolveria cruzar convicções pessoais em um plano comum, mas nesse caso não haveria critérios para resolver a questão.

Isso que eu falei pode parecer óbvio, mas minha intenção é apenas mostrar que certo tipo de conhecimento é apenas válido se você tem a predisposição de concordar com o que está sendo dito. No caso de Adorno (ou no meu e do diretor), só poderíamos dizer: "É, tenho a mesma opinião." Ou então, "Não acho isso.". E é até difícil encontrar dados empíricos para anular um dos argumentos, pra piorar ainda mais. Podemos encontrar vários casos que falseiam quaisquer uma das hipóteses, e ainda sim reagir com compaixão, vociferando: "Mas não é esse o contexto."

O título desse post está inadequado também. Não há erro de Adorno, porque nunca houve espaço para acerto. O jogo que ele joga não é avaliado por esses critérios lógicos, mas pelos do carisma e da tradição. Adorno não é irracional: seu problema está na aplicação de certos nomes e o que eles significam (alienação, fetichismo - a ideologia marxista fundamenta quase tudo). Para muitos, a correlação entre tais conceitos e algo presente na realidade é certa. Mas para uma grande parte, está muito longe de ser verdade.

E não adianta falar que somos reféns do sistema. Rudolf Carnap - conhecido pelo entusiasmo com ciência e lógica para o entendimento do mundo - era comunista. Na verdade, acredito que qualquer pessoa de esquerda deveria fazer o mesmo, se quiser levar o projeto de Marx adiante. Não sei como ficar delirando a la Adorno serviria para contribuir para o fim da luta de classes.

Prefiro conhecimento que você não precisa "acreditar nele pra ser verdade". Muitos questionam a existência de um mundo real, dizendo que ele é o que você imagina. Queria que fosse assim, para eu poder desimaginar a lei da gravidade e sair voando por aí LOL

Brincadeiras à parte, nada contra Adorno ter essa opinião polêmica. Mas ele podia pelo menos mostrar o lado oposto, da "revolução espontânea". Ele não o fez, pois como disse Walter Benjamin no começo de um ensaio, é um teoria "fascista" da estética . Pode-se comparar com as duas tradições de pensamento que norteiam a sociologia: a interpretativa e a estrutural-funcionalista. A primeira seria para Adorno e Benjamin "de direita", enquanto a segunda, uma genuína investigação das desigualdades exibidas pela dialética e teoria crítica. Marxistas de cabeça fechada, esses dois.

Faz parte da educação humana

"Uma pessoa que não pode fazer certa quantidade de trabalho estereotipado não é um indivíduo saudável."
George Herbert Mead
Na vida, nem tudo são flores. Não se pode fazer sempre o que quer, e saber ceder é tão importante quanto valorizar o ganho.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A erupção da comunidade na linguagem

Quanto mais forte uma comunidade, mais consensual ela é. Os indivíduos expressam diversas proposições que outros tomam e discordam, expondo um argumento divergente. No entanto, todas as proposições elaboradas são tomadas à luz do que a comunidade consideraria. Como disse Wittgenstein, não existe linguagem privada. As proposições existem para um indivíduo tomar como objeto e reagir a ela: e quanto mais forte a comunidade, mais convergente será essa reação com sua fonte. Em outras palavras, a linguagem expressada por um indivíduo é sempre elaborada à luz de uma futura audiência, seja ele mesmo, seja um “outro generalizado”, que é a abstração de todas as outras forças que emitem ações significativas. Assim, todas as crenças existem por sermos autoconscientes e empáticos (vemos que outros também têm consciência). Mesmo se acreditamos que ela é “somente uma opinião”, ela foi elaborada à luz de uma audiência (ao menos nós mesmos) que deve aceitá-la. Caso contrário estamos sendo irracionais.
Um bom exemplo de força comunitária que gera consensos é uma partida de futebol: todos os jogadores sabem como se devem portar, quais regras seguir e o como devem reagir em diversas eventualidades, desejáveis ou não. Aqui, há muito menos dissenso do que em uma arena política, ou em uma sala de aula de sociologia nos tempos atuais. Os gestos a serem feitos estão programados, assim como as reações a outros gestos dos demais participantes.
Entender como jogar um jogo, quais regras seguir e o que esperar dos outros, é uma etapa importante na socialização e na composição de um Eu (Mead).
Se a comunidade brasileira fosse uma entidade única, não haveria dissensos jamais. Sobre nada, porque todas nossas concepções são formuladas à luz de uma comunidade (o outro generalizado). É a audiência de nossas expressões.
E com tantos dissensos, nos debates políticos, nos valores culturais, nas visões sociológicas, pergunto: onde está nossa comunidade? Parece que andamos para uma fragmentação social que sabe-se lá no que vai dar. Não sei se era diferente antigamente, mas provavelmente estamos numa era mais plural quanto aos grupos que compõem uma sociedade. O pós-marxismo, por exemplo, abandonou o tradicional dualismo marxista em favor a uma multitude de grupos em conflito pelo poder.
Clamo pelo resgate do consenso e o fortalecimento de nossa comunidade, baseada em valores universais – tolerância, compromisso e diligência.

Autores inspiradores: George Herbert Mead, Erving Goffman, Ludwig Wittgenstein e Jurgen Habermas. E um pouco de Mussolini hehe.